quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Um pouco de Saramago e sobre o Direito à Morte e ao Luto!


Caras e Caros,

Faz dois dias que comecei a ler “As Intermitências da Morte” do Saramago. Confesso, nunca tinha lido um Saramago e por isso pegar o jeito que o sujeito escreve não foi fácil. Acontece que desde que me falaram que tinha um livro com tal temática fiquei com vontade de ler. Isso pq é uma viagem minha de criança, quando tive meu primeiro conflito sobre a morte e a óbvia vontade de não morrer. Foi quando pensei que se ninguém morresse a parada ia ficar bagunçada. No mesmo sentido foi aí meu primeiro conflito com a idéia de céu construída pelos cristãos.

Sei que superadas as dificuldades iniciais estou simplesmente devorando o livro. Contudo, ontem a noite em meio a minha insônia e a leitura do livro lembrei do caso da italiana que estava viva fazia 17 anos e o pai lutava para desligar os aparelhos. É verdade que não li o livro todo,então não sei se o caso tem haver com o fim do livro. Mas até a parte que li tinha muito...

Disso lembrei de um texto muito interessante que tinha visto na época da polêmica da eutanásia. Assim que lembrei decidi que seria nosso tema de hoje. Um texto muito interessante e que foi publicado no Estado de São Paulo. Pra quem não lembra do caso deixo uma pequena notícia pra recordar no início. Não deixem de ler o texto!

Fui!



a notícia;

SEGUNDA, 9 DE FEVEREIRO
Fim do caso comove Itália


Depois de 17 anos em coma vegetativo, a italiana Eluana Englaro morre
em decorrência da diminuição parcial de sua alimentação artificial. O
Senado tentava aprovar um projeto de lei para impedir a morte da
paciente quando recebeu a notícia do falecimento.

O texto:

Morte digna e luto: direitos a considerar

Pai quis assegurar a Eluana a concretização de um desejo calado havia
17 anos pelo silêncio do coma

Debora Diniz e Tatiana Lionço*

Eluana Englaro sofreu um acidente de carro aos 21 anos e viveu 17 em
coma sob cuidados médicos permanentes para se manter viva. Durante 12
anos, seu pai lutou na Justiça italiana em busca de autorização para
deixá-la morrer. Segundo ele, essa era a vontade expressa de Eluana
antes de sofrer o acidente. As últimas semanas foram de intensa
controvérsia na sociedade italiana, em especial com a Igreja Católica,
cuja posição era de radical oposição a deixá-la morrer. Um dos
principais legados da história de Eluana foi ter acendido o debate em
países católicos sobre os limites da medicalização e o direito de
morrer.

É um equívoco descrever a morte de Eluana como eutanásia. Eutanásia é
um ato médico que provoca a morte de uma pessoa pelo uso de
medicamentos, sendo a injeção de potássio o recurso mais comum. A
pessoa não está agonizante ou em estado vegetativo, mas em estágios
avançados de uma doença. Em geral, os casos de eutanásia ocorrem após
a certeza de um diagnóstico de doença letal e degenerativa, mas em um
momento em que a pessoa se encontra lúcida para a tomada de decisões.
A eutanásia é proibida em quase todos os países, sendo a Holanda e a
Bélgica raras exceções. Muitos casos de eutanásia na Holanda são de
idosos que apresentaram os sintomas intermediários da doença de
Alzheimer: são pessoas que vivem sob a certeza do prognóstico da
demência total, mas ainda estão lúcidas para a tomada de decisão.

Eluana não morreu por eutanásia médica. Simplesmente foi retirado de
sua rotina de cuidados aquilo que a mantinha em sobrevida. Há quem
defina esse processo como "eutanásia passiva". Na América Latina, a
decisão da corte colombiana autorizando a eutanásia passiva em 1998
foi um marco no debate internacional. O adjetivo "passivo" indicaria
que não se provoca diretamente a morte, apenas se retiram
medicamentos, alimentos ou hidratação. Há uma expectativa moral de que
a morte simplesmente tenha seguido seu curso natural, afastando-se o
excesso de tecnologia do corpo agonizante. A fronteira entre eutanásia
passiva e ativa é tênue, mas a diferenciação oferece conforto aos
teólogos, médicos e enfermeiros envolvidos na tomada de decisão sobre
a morte. É nessa redescrição moral que se entende a morte de Eluana
como natural - foi dado a ela o direito de morrer.

O avanço da tecnologia médica tornou a morte um fato indeterminado na
vida de uma pessoa. É possível estender a sobrevida por longos
períodos, e Eluana é um exemplo disso. Quase metade de sua existência
foi vivida sob a vigilância de aparelhos. Se, por um lado, esse
excesso de medicalização acende o tema do direito de morrer, por
outro, também provoca o debate sobre o direito das famílias ao luto. O
pai de Eluana representava esse segundo lado da questão. A família de
Eluana foi forçada a viver uma melancolia prolongada, uma espera
permanente e indefinida pela morte efetiva da filha. A morte foi
suspensa pela tecnologia médica, mas não foi oferecida a alegria da
recuperação. Por isso, associado ao direito de morrer de Eluana,
estava o direito ao luto da família.

Afirmar o direito ao luto não é um eufemismo para autorizar o
homicídio de pessoas vulneráveis ou doentes em nome da compaixão pelo
sofrimento. O pedido do pai de Eluana para que a deixassem morrer não
deve ser entendido como um ato desesperado de cansaço pela espera de
17 anos sem recuperação da filha. A morte é um fim inexorável à
existência humana, e reconhecê-la como uma sentença é um ato de
dignidade para quem sofre e para quem cuida. Não é por acaso que
muitos teólogos católicos que defendem o direito de morrer livre da
tortura da medicalização insistem que eutanásia não deve ser um crime,
mas um ato de proteção para a "boa morte". Há quem entenda que, ao
morrer em casa, o papa João Paulo II seguiu essa tradição da boa
morte.

Esse é um campo delicado de sutilezas morais em que os conceitos
importam para descrever os fenômenos sociais. Fala-se em direito de
morrer, eutanásia passiva e ativa, suicídio assistido e recusa de
tratamento, variações linguísticas de um mesmo ato: o enfrentamento do
momento da morte. A soberania médica e tecnológica foi desafiada nessa
questão. A resposta não está mais no que pensam os médicos sobre o
curso de uma doença ou seu prognóstico. Em muitos casos, o desafio não
é técnico, mas essencialmente ético, até mesmo porque não há mais nada
a oferecer à pessoa doente. Cada pessoa, na intimidade de suas
escolhas e convicções, passa a reclamar o direito de morrer como uma
extensão de sua forma de estar no mundo. A morte torna-se um processo
pensado e planejado, por isso crescem iniciativas de formalização de
testamentos vitais.

Eluana não havia deixado um testamento vital, um documento no qual
teria antecipado como desejaria morrer e sob que circunstâncias
gostaria que lhe fossem retirados tratamentos ou mecanismos de
sustentação da vida. Na ausência da vontade expressa de Eluana, seus
pais a representavam, em especial após quase duas décadas de cuidados
hospitalares e espera por sinais de recuperação. No entanto, a
controvérsia pública lançada pela Igreja Católica na Itália colocou o
pai de Eluana no banco dos réus: de alguém que representava sua
vontade, protegia seu bem-estar e dignidade, ele passou a um potencial
homicida de uma filha vulnerável.

O final da peregrinação judicial do pai de Eluana pelo direito de
morrer fechou um ciclo doloroso de negociações. Primeiro, contra a
medicalização sem sentido. Não havia mais recursos médicos para
retirar Eluana do estágio de sobrevivente agonizante, e os tratamentos
médicos apenas mantinham seu corpo funcionando à espera da morte: ela
pesava 40 quilos e seu corpo apresentava diversas lesões. Segundo,
contra o tabu da morte. Durante 12 anos, ele percorreu tribunais e
equipes médicas à procura de autorização para a recusa de tratamentos.
A subordinação do pai de Eluana à legalidade não deve ser subestimada,
pois representa o verdadeiro desafio moral - escolher a morte pode ser
um direito. Por fim, ele foi forçado a redefinir-se perante as
acusações de que desejaria matar a filha. O pai de Eluana demonstrou
que a morte pode ser um ato de cuidado para quem sofre e para quem
cuida. Junto ao direito de morrer da filha, ele reclamou seu direito
ao luto: queria dar à filha, ainda em vida, a concretização de um
desejo que lhe resgatou a voz calada havia 17 anos no silêncio do
coma. Ele queria estar livre da melancolia da espera.

*Debora Diniz, antropóloga, e Tatiana Lionço, psicóloga, são
pesquisadoras da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e
Gênero

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