Maioria dos alemães orientais sente que a vida era melhor no comunismo
Der Spiegel
Por Julia Bonstein
A apologia da República Democrática Alemã está em alta, duas décadas
depois da queda do muro de Berlim. Os jovens e os mais ricos estão
entre os que desaprovam as críticas segundo as quais a Alemanha Oriental
era um "Estado ilegítimo". Numa nova pesquisa, mais da metade dos
antigos alemães orientais defende a RDA.
A vida de Birger, nascido do Estado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental
no nordeste da Alemanha, poderia ser vista como uma história do
sucesso alemão. O muro de Berlim caiu quando ele tinha dez anos.
Depois de se formar no colegial, ele estudou economia e administração
em Hamburgo, morou na Índia e na África do Sul, e depois conseguiu um
emprego numa companhia na cidade ocidental de Duisburg. Hoje, Birger,
30, planeja velejar no Mediterrâneo. Ele não quis usar seu
nome verdadeiro nesta reportagem, porque não quer ser associado à
antiga Alemanha Oriental, que ele vê como "um rótulo com conotações
negativas."
Mesmo assim, sentado num café em Hamburgo, Birger defende o antigo
país comunista. "A maioria dos cidadãos alemães orientais tinha uma
vida boa", diz ele. "Com certeza, não acho que aqui é melhor." Por
"aqui", ele quer dizer a Alemanha reunificada, que ele submete a
comparações questionáveis.
"No passado havia a Stasi [polícia secreta da Alemanha Oriental], e hoje existe (o ministro de interior da Alemanha Wolfgang) Schäuble - ou o GEZ (o centro de arrecadação de impostos das instituições de rádio e televisão públicas da Alemanha) - que coleta informações sobre nós." Na opinião de Birger, não há diferenças fundamentais entre a ditadura e o momento atual. "As pessoas que vivem na linha de pobreza hoje não têm liberdade para viajar."
Birger não é de forma alguma um jovem sem instrução. Ele está
consciente da espionagem e da repressão que aconteceram na antiga
Alemanha Oriental, e, segundo ele, "não era uma coisa boa que as
pessoas não pudessem sair do país, e muitos foram oprimidos". Ele não é
fã do que acredita ser uma nostalgia desprezível pela antiga Alemanha
Oriental. "Eu não construí um templo para adoração dos pickles
Spreewald na minha casa", disse ele, referindo-se à conserva que fazia
parte da identidade da Alemanha Oriental. De qualquer forma, ele não
perde tempo em argumentar contra os que criticam o lugar que seus pais
chamavam de lar: "Não dá para dizer que a RDA era um estado ilegítimo,
e que tudo está bem hoje".
Como um defensor da ditadura da antiga Alemanha Oriental, o jovem compartilha da visão da maioria das pessoas da parte oriental da Alemanha. Hoje, vinte anos depois da queda do muro de Berlim, 57%, ou a maioria absoluta, de alemães orientais defendem a antiga Alemanha Oriental. "A RDA tinha mais pontos positivos do que negativos. Havia alguns problemas, mas a vida era boa lá", dizem 49% dos entrevistados. Oito por cento dos alemães orientais se opõem veementemente a todas as críticas à sua antiga terra natal e concordam com a declaração: "a RDA tinha, na maior parte, pontos positivos. A vida lá era mais feliz e melhor do que na Alemanha reunificada de hoje".
O resultado dessas pesquisas, divulgado na sexta-feira em Berlim,
revela que a glorificação da antiga Alemanha Oriental atingiu o cerne
da sociedade. Hoje, não é mais uma mera nostalgia eterna que chora a
perda da RDA. "Uma nova forma de Ostalgia (nostalgia pela antiga RDA)
se constituiu", diz o historiador Stefan Wolle. "A ânsia pelo mundo
ideal da ditadura vai muito além das antigas autoridades
governamentais." Até os jovens que quase não tiveram experiência com a
RDA a estão idealizando hoje. "O valor de sua própria história está em
jogo", diz Wolle.
As pessoas estão ignorando os defeitos da ditadura, como se as
críticas ao Estado fossem um questionamento de seu próprio passado.
"Muitos alemães orientais percebem as críticas ao sistema como um
ataque pessoal", diz o cientista político Klaus Schroeder, 59, diretor
de um instituto na Universidade Livre de Berlim que estuda o antigo
Estado comunista.
Ele alerta a respeito dos esforços para subestimar a ditadora SED por parte dos jovens cujo conhecimento sobre a RDA é derivado principalmente de conversas familiares, e não tanto daquilo que aprenderam na escola. "Nem mesmo metade desses jovens na parte oriental da Alemanha descrevem a RDA como uma ditadura, e a maioria acredita que a Stasi era um serviço de inteligência normal", concluiu Schroeder num estudo de 2008 feito com estudantes. "Esses jovens não podem, e na verdade não querem, reconhecer o lado sombrio da RDA."
"Retirados do paraíso"
Schroeder fez inimigos com declarações como essa. Ele recebeu mais de
quatro mil cartas, algumas delas furiosas, em resposta a reportagens
sobre seu estudo. Birger, de 30 anos, também enviou um e-mail para
Schroeder. O cientista político agora compilou uma seleção de cartas
típicas para documentar o clima opinativo no qual a RDA e a Alemanha
unificada são discutidas na parte oriental da Alemanha. Parte do
material proporciona um insight chocante sobre os pensamentos dos
cidadãos decepcionados e irritados. "Sob a perspectiva atual, acredito
que fomos retirados do paraíso quando o muro caiu", escreveu uma
pessoa, e um homem de 38 anos "agradece a Deus" por ter tido a chance
de viver na RDA, acrescentando que só depois da reunificação da
Alemanha ele observou a existência pessoas que temiam por sua
existência, pedintes e pessoas sem-teto.
A Alemanha de hoje é descrita como um "Estado de escravos" e uma
"ditadura do capital", e alguns autores das cartas rejeitam a Alemanha
por ser, em sua opinião, muito capitalista ou ditatorial, e certamente
não democrática. Schroeder acha essas declarações alarmantes. "Temo
que a maioria dos alemães orientais não se identifiquem com o atual
sistema sociopolítico."
Muitos dos autores das cartas são pessoas que não se beneficiaram da
reunificação da Alemanha ou que preferem viver no passado. Mas também
incluem pessoas como Thorsten Schön.
Depois de 1989, Shön, um artesão de Stralsund, cidade do mar Báltico,
a princípio atingiu um sucesso depois do outro. Apesar de não ser mais
dono do Porsche que comprou depois da reunificação, o tapete de pele
de leão que ele comprou numa viagem à África do Sul - uma das muitas
que fez ao exterior nos últimos 20 anos - ainda está estendido
no chão de sua sala de estar. "Não há dúvida: eu tive sorte", disse o
homem de 51 anos. O grande contrato que ele conseguiu durante o
período após a unificação tornou as coisas mais fáceis para Schön
abrir seu próprio negócio. Hoje ele tem uma visão clara de Strelasund
direto da janela de sua casa avarandada.
"As pessoas mentem e trapaceiam em todo lugar hoje"
Objetos de Bali decoram sua sala de estar, e uma versão em miniatura
da Estátua da Liberdade fica ao lado do seu DVD player. Apesar de
tudo, Schön senta-se no sofá e conta com entusiasmo sobre os bons e
velhos tempos na Alemanha Oriental. "Antigamente, as áreas de camping
eram lugares onde as pessoas desfrutavam da liberdade juntas", diz
ele. O que ele mais sente falta hoje é "daquele sentimento de
companheirismo e solidariedade". A economia da escassez, completada
pelas trocas, era "mais como um hobby". Se ele tem uma ficha na Stasi?
"Não estou interessado nisso", diz Schön. "Além do mais, seria muito
desapontador."
Sua avaliação sobre a RDA é clara: "No que me diz respeito, o que
tivemos naquela época foi menos ditatorial do que temos hoje". Ele
quer ver salários iguais e pensões iguais para os moradores da antiga
Alemanha Oriental. E quando Schön começa a reclamar da Alemanha
unificada, sua voz contêm um elemento de satisfação consigo mesmo. As
pessoas mentem e trapaceiam em todo lugar hoje, diz ele, e as
injustiças de hoje são simplesmente perpetradas de uma forma mais
astuta do que na RDA, onde não se ouvia falar de salários de fome e
pneus de carro cortados. Schön não tem nada a dizer sobre suas
próprias experiências ruins na Alemanha atual. "Estou melhor hoje do
que antes", diz ele, "mas não estou mais satisfeito."
O pensamento de Schön envolve menos a lógica fria do que a necessidade
de defender seu ponto. O que o torna particularmente insatisfeito é "o
modo falso como o Oeste pinta o Leste hoje". A RDA, diz ele, "não era
um Estado injusto", mas "meu lar, onde minhas conquistas eram
reconhecidas". Schön repete obstinadamente a história de como levou
anos de trabalho duro para ele começar seu próprio negócio em 1989 -
antes da reunificação, ele acrescenta. "Aqueles que trabalharam duro
também foram capazes de se dar bem na RDA". Isso, diz ele, é uma das
verdades que são persistentemente negadas nos programas de debate,
quando os alemães ocidentais "agem como se os alemães orientais fossem
todos um pouco tolos e ainda deveriam estar de joelhos em gratidão
pela reunificação". O que exatamente há para ser celebrado, Schön se
pergunta?
"Memórias tingidas de cor-de-rosa são mais fortes do que as
estatísticas de pessoas tentando escapar e os pedidos de vistos de
saída, e ainda mais fortes do que os arquivos sobre assassinatos no
muro de Berlim e sentenças políticas injustas", diz o historiador
Wolle.
São as memórias de pessoas cujas famílias não foram perseguidas e
vitimizadas na Alemanha Oriental, de pessoas como Birger, de 30 anos,
que diz hoje: "Se a reunificação não tivesse acontecido, eu também
teria tido uma vida boa".
A vida como um cidadão da RDA
Depois de se formar na universidade, diz, ele teria sem dúvida
aceitado uma "posição de gerência em alguma empresa", talvez da mesma
forma que seu pai, que era o presidente de uma cooperativa de
fazendeiros. "A RDA não tinha nenhuma influência na vida de um cidadão
da RDA", conclui Birger. Essa visão é compartilhada por seus amigos,
todos eles com estudo superior e filhos de ex-alemães orientais,
nascidos em 1978. "Reunificação ou não", concluiu o grupo de amigos
recentemente, de fato não faz diferença para eles. Sem a reunificação,
suas opções de viagem seriam Moscou ou Praga, em vez de Londres e
Bruxelas. E o amigo que trabalha no governo em Mecklenburg hoje
provavelmente teria sido um oficial leal ao partido na RDA.
O jovem expressa suas visões de forma equilibrada e com poucas
palavras, apesar de parecer um pouco desafiador em alguns momentos,
como quando diz: "Eu sei, o que estou dizendo não é tão interessante.
A história das vítimas é mais fácil de contar."
Birger não costuma mencionar sua origem. Em Duisburg, onde ele
trabalha, quase ninguém sabe que ele é da Alemanha Oriental. Mas nessa tarde, Birger está disposto a contradizer "a história escrita pelos vitoriosos". "Na percepção do público, há apenas vítimas e carrascos. Mas as massas ficam à margem."
Eis alguém que se sente pessoalmente afetado quando o terror e a
repressão da Stasi são mencionados. Ele é um acadêmico que sabe "que
ninguém pode consentir com os assassinatos no muro de Berlim".
Entretanto, no que diz respeito às ordens dos guardas no muro de matar
os que tentassem fugir, ele diz: "Se há um grande sinal ali, você não
deveria ir lá. Foi totalmente negligente".
Isso levanta uma antiga questão mais uma vez: existia uma vida real em
meio à fraude? Subestimar a ditadura é visto como o preço que as
pessoas pagam para preservar seu autorrespeito. "As pessoas estão
defendendo suas próprias vidas", escreve o cientista político
Schroeder, descrevendo a tragédia de um país dividido.
(Tradução: Eloise De Vylder)